As empresas de energia solar e eólica têm pela frente uma barreira que causa prejuízos na casa do bilhão. Trata-se do curtailment, como são chamados os cortes de geração de energia elétrica decididos pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). A medida visa evitar apagões causados por sobrecargas no sistema de transmissão e dá o tamanho do problema estrutural que o país enfrenta. A disputa que nasceu dessa situação, com diferentes decisões judiciais, e o potencial afastamento de investimentos dão o tom do desafio que sua resolução representa.
“O curtailment ocorre porque há um descompasso entre os momentos em que a energia é gerada e os momentos em que a energia é mais demandada. Hoje, o operador do sistema prioriza cortar as fontes renováveis, eólica e solar, que são mais flexíveis e tecnicamente mais fáceis do que cortar as térmicas, um processo que tem uma lentidão maior”, explica Ricardo Baitelo, gerente de projetos do Instituto de
Energia e Meio Ambiente (Iema).
Para se ter ideia do impacto sobre o setor, um levantamento da consultoria Volt Robotics apontou que o impacto direto sobre o faturamento das companhias resultou em perdas de mais de R$ 1,6 bilhão em 2024, com o corte de mais de 14,6 terawatts-hora (TWh) para 1.445 usinas.
As limitações na infraestrutura de transmissão foram a motivação para os cortes em 65% dos casos, de acordo com a pesquisa da Volt Robotics. O excesso de geração em determinados horários, por sua vez, resultou nos outros 35%. A região Nordeste foi a mais afetada, com 330 mil horas de restrições. Os Estados da Bahia, Ceará e Rio Grande do Norte foram os mais prejudicados.
Para Baitelo, as dificuldades impostas ao setor pelo curtailment são um reflexo da falta de planejamento e investimentos em transmissão e armazenamento de nergia. “Certamente falta investimento, falta planejamento, porque tivemos um intervalo de tempo grande em que foram contratadas as fontes renováveis por menor custo, mas agora precisamos pensar em como o sistema pode absorver essa dificuldade”, diz Baitelo. “Tem alguns pontos de gargalo no Brasil e falta armazenamento da energia para que ela não seja simplesmente desperdiçada.”
A compensação para empresas afetadas pelo curtailment, também chamado de “constrained off”, tem sido objeto de debates e ações judiciais. Entidades como a Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica) e a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar) foram à Justiça buscar ressarcimento. Ambas alegavam que a limitação de compensações financeiras imposta por decisão da
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) excedia sua competência.
De acordo com Rodrigo Sauaia, presidente-executivo da Absolar, o pedido de ressarcimento coloca eólicas e solares na mesma situação de hidrelétricas e termelétricas, que têm direito. “Isso gerou um grande transtorno aos agentes [do mercado]. Em vez de simplesmente aplicar a regra prevista em lei para [as usinas] solares, a Aneel estabeleceu uma regra nova e criou uma franquia de horas que não são remuneradas quando as usinas renováveis são cortadas”, afirma. “Ela também subdividiu os cortes em três tipos diferentes e só a um deles deu a possibilidade de ressarcimento para a parcela que ultrapassar essa franquia de horas.”
Em novembro do ano passado, em decisão liminar, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) entendeu que a legislação que regula o setor garante o direito de ressarcimento aos geradores por interrupções forçadas na produção de energia.
Dois meses depois, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) atendeu pedido da Aneel e suspendeu a decisão. De acordo com o tribunal, seria necessária uma análise detalhada dos riscos inerentes à atividade das geradoras para que estas pudessem repassar os prejuízos aos consumidores.
O impasse regulatório gera insegurança para investidores e pode impactar a expansão futura de projetos renováveis no Brasil. “O impacto é grande sobre os empreendedores, porque a receita que é projetada quando você leiloa um parque eólico ou um parque solar para 20 anos, ou 15 anos, pode não se concretizar”, diz Baitelo. “Isso tende a criar um risco grande para os outros empreendimentos que
virão e que terão de projetar um custo muito mais elevado.”
Para Gustavo Ayala, CEO da comercializadora Bolt Energy, esse é um impasse que precisa ser resolvido o mais rápido possível para que as fontes renováveis possam acompanhar o aumento do consumo de energia per capita no país. “É um problema que não pode ser atribuído a quem gera a energia, e é ele que está sendo penalizado por isso. Se não houver investimentos, teremos um hiato na geração de
energia renovável”, diz.
Essa situação se agrava por uma combinação de fatores, como a lenta expansão das redes de transmissão e a crescente participação das fontes renováveis na matriz energética. Especialistas destacam a necessidade de reduzir a inflexibilidade no despacho das usinas termelétricas, como forma de viabilizar uma maior integração das fontes renováveis ao sistema elétrico. Além disso, avançam as discussões sobre a revisão do modelo de leilões de energia, com o objetivo de incentivar a descentralização, o armazenamento de energia e a adoção de tecnologias voltadas à gestão inteligente da demanda.
Para Baitelo, não há saídas além do óbvio. “As soluções imediatas para reduzir o curtailment são, sem dúvida nenhuma, mais investimentos em transmissão, para que essa energia possa ser escoada, e principalmente no armazenamento de energia, que vai permitir que ela possa ser estocada por um número de horas e atender a uma carga noturna.”
O Ministério de Minas e Energia (MME) afirma que os cortes de geração renovável no Brasil estão sendo acompanhados pelo governo federal desde seu início e que trabalha para ampliar a rede de transmissão de energia elétrica. “Desde 2023, foram realizados leilões de transmissão de energia elétrica, que somam investimentos de mais de R$ 60 bilhões. Esses investimentos, em grande parte, destinam-se a ampliar
a capacidade de trazer a geração renovável das regiões Norte e Nordeste do país (regiões produtoras de energia renovável) para as regiões Sul, Sudeste e CentroOeste (regiões onde o consumo de energia elétrica é mais intenso)”, afirma o MME.
De acordo com o ministério, em outubro haverá novo leilão de transmissão, no qual constarão algumas medidas de solução propostas por um grupo de trabalho (GT) criado no âmbito do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) para mitigar parte do problema do corte de geração renovável no Brasil. “Já foram realizadas nove reuniões e estão sendo avaliadas soluções já de curto prazo para enfrentamento da questão, incluindo questões associadas à minimização dos cortes e do seu impacto financeiro. O GT vem ouvindo diversas associações setoriais, buscando a proposição de medidas ao CMSE capazes de equilibrar interesses de geradores e consumidores com adequada alocação de custos e riscos, resguardando a segurança jurídica do setor”, diz nota do MME.
Por Emílio Sant’Anna – 30/05/2025
Revista Energia – Valor Econômico
Empresas de energia renovável sofrem prejuízos bilionários com curtailment
30
maio
2025
