A abertura do mercado livre de energia aos consumidores de pequeno porte em janeiro de 2024 permitiu que empresas com contas de energia acima de R$ 10 mil por mês aderissem à modalidade de comercialização livre. Com isso, de acordo com a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), cerca de 25 mil pequenos e médios consumidores responderam por 92% das novas adesões ao ambiente de comercialização livre no ano passado.
A expansão foi liderada pelos setores de comércio e de serviços. Samuel Mutini, gerente nacional de energia e manutenção do grupo Pereira, conta que a migração para o uso de energia renovável no mercado livre aconteceu em 97% das unidades do grupo. “Migramos em todas as lojas das bandeiras Fort Atacadista e Supermercados Comper, nos centros de distribuição atacadista Bate Forte e na nossa sede, em Campo Grande (MS)”, diz.
O motivo? Redução de custos operacionais, previsibilidade nos custos e sustentabilidade. Além de usar energia eólica fornecida pela Engie, o grupo Pereira utiliza autogeração solar em algumas lojas. “Desde 2020, todas as novas lojas já são inauguradas com uso de energia renovável”, conta Mutini.

No setor de shopping centers, a migração para o mercado livre de energia já chega a 92%, segundo os dados mais recentes da Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce). Para Glauco Humai, presidente da entidade, a possibilidade de negociar preços de energia mais vantajosos torna os shoppings mais competitivos. Além das vantagens de custo, o mercado livre traz flexibilidade de escolha, acrescenta Humai.
“É possível optar por fontes mais sustentáveis, como solar e eólica, diminuindo o impacto de fontes sobrecarregadas, como a hidráulica”, diz. A abertura aos pequenos e médios consumidores exigiu empenho das comercializadoras. “Nos preparávamos para a abertura do mercado desde 2018, com a estruturação de novos canais de venda indireta, que hoje são responsáveis pela maior parte das vendas para este segmento”, diz Gabriel Mann, diretor de comercialização de energia da Engie Brasil Energia.
Segundo Mann, a Engie registrou um market share de 7,5% no mercado livre e um crescimento em 2024 de cerca de 32% no número de consumidores livres atendidos, impulsionada pela abertura do ambiente de contratação livre aos pequenos e médios clientes. A estratégia para o segmento envolveu ainda o reforço e ampliação dos canais de atendimento e a criação de modelos de contrato simplificados, que
facilitam a migração dos clientes. “Também continuamos apostando na digitalização”, ressalta Mann. “Nossa plataforma digital Energy Place tem um portal de autoatendimento e um e-commerce, que são um diferencial de escalabilidade do nosso negócio.”
Para Gustavo Ayala, CEO da Bolt Energy, há um grande potencial de adesão entre padarias, cerâmicas, empresas de construção civil, condomínios e prédios comerciais. “A tendência é de expansão contínua e amadurecimento”, diz. No médio prazo, o mercado deve consolidar a migração dos consumidores do grupo A (alta tensão), com aumento da competição entre comercializadoras. “Também haverá demanda por serviços mais completos, incluindo análise de perfil, gestão de risco, automação de consumo, ESG, entre outros, e maior exigência por parte dos consumidores”, continua Ayala. Ele explica que os clientes passam a ter liberdade de escolha e não ficam mais restritos às tarifas voláteis das distribuidoras. Para isso, devem compreender os tipos de contrato disponíveis e suas condições.
Clarissa Sadock, CEO da Comerc Energia, vê o mercado com otimismo. “A abertura está alinhada com nossa estratégia de expansão”, diz. Ela prevê que o volume de migração em 2025 deve se acelerar ainda mais. “As cerca de 25 mil unidades novas migradas em 2024 correspondem a 25% do potencial total. No médio prazo, com a conclusão da regulamentação necessária, a expectativa é que todos os consumidores possam acessar o mercado livre”, afirma.
Outros players são mais cautelosos em relação à velocidade dessa expansão. Carlos Schoeps, diretor da Replace Consultoria, estima que dos cerca de 200 mil clientes com potencial para entrar no mercado livre de energia, considerando todos os portes, quase a metade já fez a transição.
Schoeps explica que a migração dos pequenos e médios começou por clientes com maior gasto mensal, especialmente redes de lojas, com um alto consumo total na soma das unidades. Isso torna o mercado mais pulverizado e a captação de clientes mais desafiadora para as comercializadoras. “Além disso, o preço da energia subiu, o que reduz o ganho para quem quer migrar neste momento”, avalia.
Já Dario Albagli, diretor da comercializadora e geradora Genco Energia, observa que a conta média dos pequenos clientes que migraram para o mercado livre no ano passado era de 20 centavos por MW médio. “Agora, essa média é de 2 a 3 centavos”, compara.
Segundo Albagli, isso deve mudar a postura das comercializadoras. “Além de aumentar o custo de captação dos clientes, será preciso lidar com maior risco de crédito”, avalia. Do ponto de vista dos consumidores, ele concorda que os preços ficaram menos convidativos para entrar no mercado livre. “Por isso, muitos players estão oferecendo opções com desconto garantido em relação às tarifas da
distribuidora.”
De fato, pacotes de desconto garantido vêm sendo oferecidos por diversas comercializadoras. Segundo Lucas Harb, gerente comercial nacional da Echoenergia, braço de comercialização do grupo Equatorial, a empresa tem adotado contratos de longo prazo, associados ao modelo de economia garantida, como estratégia para atrair novos consumidores no segmento de pequenas e médias empresas. “Isso facilita a abordagem dos clientes, porque torna um mercado extremamente técnico mais fácil de entender.”
Harb também relativiza o efeito da volatilidade de preços na atração de novos clientes. “É claro que a volatilidade pode ser um desafio, mas o preço da energia hoje ainda está na metade da média histórica. Além disso, acredito que é possível mitigar esse risco para os consumidores”, diz.
Para Carlos Guerra, vice-presidente de novos negócios da Elera Renováveis, o atendimento aos pequenos consumidores no mercado livre de energia é desafiador e pode representar riscos, tanto para clientes quanto para as comercializadoras. “Ao oferecer descontos garantidos, por exemplo, as comercializadoras precisam estar atentas não apenas à volatilidade dos preços, mas também à volatilidade dos encargos”, destaca. Guerra também aponta um risco operacional para o mercado. Segundo ele, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) tem praticado o curtailment, cortes na geração de energia para evitar sobrecargas na rede. “Esses cortes atingem principalmente as geradoras de energia renovável, que atendem ao mercado livre.
Na maioria das vezes, não há remuneração para o produtor”, explica. “Por isso, o ideal é que as comercializadoras tenham um portfólio diversificado de fornecimento, para evitar surpresas no cumprimento dos contratos.” Para migrar com segurança, Sadock, da Comerc, observa que os consumidores devem buscar comercializadoras sólidas no fornecimento de energia, com robustez para condução do processo de migração. E acrescenta: “Também é recomendável buscar flexibilidade de consumo, para não ficar suscetível às oscilações de preços no curto prazo, impactadas pela expectativa de chuvas e pelo nível dos reservatórios das hidrelétricas”.
Do ponto de vista dos pequenos clientes que já migraram, Schoeps, da Replace Consultoria, recomenda ficar atento à renovação dos contratos. “O ideal é não deixar para fazer a renovação perto do prazo de vencimento”, explica. “Isso pode deixar o consumidor muito vulnerável às oscilações de preço.” Segundo Schoeps, outro ponto a se observar é a duração dos contratos. “Contratos longos demais podem expor o consumidor ao risco da inflação, dependendo do índice de reajuste que será aplicado ao contrato”, diz.
Mas, enquanto o setor elétrico se ajusta à entrada dos novos consumidores no mercado livre de energia, as comercializadoras não perdem o apetite. E já começam a olhar para a próxima fronteira de expansão: a abertura para todos os consumidores de baixa tensão, os clientes do chamado Grupo B.
No dia 21 de maio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou uma medida provisória (MP) que prevê a possibilidade de adesão ao mercado livre por parte da indústria e do comércio, do Grupo B, a partir de agosto de 2026, e dos consumidores residenciais a partir de 2027. A abertura dessa nova fatia de mercado, seja pela MP ou pelo Projeto de Lei 414/2021, em tramitação no Congresso Nacional, é bem-vista.
“Seria algo muito positivo. Se essa abertura for concretizada, representará 80 milhões de novos consumidores livres em potencial”, aponta Mann, da Engie. Ayala, da Bolt Energy, observa que a abertura do mercado livre ao Grupo B e aos consumidores residenciais será transformadora. “Isso vai exigir digitalização, plataformas escaláveis e modelos inovadores de atendimento”, prevê. “A tendência é que o mercado caminhe para uma lógica parecida com a do setor de telecomunicações: múltiplos players, serviços agregados, canais digitais, fidelização e valor percebido além da tarifa”, afirma.
Por Carlos Vasconcellos – 30/05/2025
Revista Energia – Valor Econômico